quarta-feira, 31 de março de 2010

Desaquecimento global

Artigo de José Reynaldo Bastos da Silva e Celso Dal Ré Carneiro*, publicado no Estadão, em 31 de março de 2010 

"Ao contrário do que propagam, o planeta Terra tem hoje temperatura média de 15º C e está numa era interglacial. Ainda não é possível afirmar quando terá início nova glaciação. Portanto, a Terra está em desaquecimento global... com oscilações." 

O tema do "aquecimento global" aparece com tal frequência na mídia que muitas pessoas creem plenamente na veracidade do fenômeno e na principal causa admitida, a de que o dióxido de carbono o determina. Isso exemplifica como um tema científico não deve ser tratado, porque houve perigosa mistura de interesses políticos, econômicos e sociais, à parte problemas e desafios de conotação essencialmente científica.

terça-feira, 30 de março de 2010

A religião da catástrofe

Artigo publicado no Le Monde, em 27 de março de 2010

Por Henri Atlan
(Tradução: Antonio Pralon)

"Mesmo que a temperatura média aumente nas próximas décadas, ainda que a produção de CO2 seja uma variável pertinente, não há certeza alguma de que sua redução seja uma forma eficaz de prevenir um eventual aquecimento global.
"

Henri Atlan é médico, biólogo e professor emérito da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, de Paris; autor de vários livros, alguns publicados no Brasil, como "O útero artificial" (Instituto Piaget, 2007) e "Será a ciência inumana? - Ensaio sobre a livre necessidade" (Cortez, 2004).

Diante da quase unanimidade da classe política em relação ao clima, eis que o Front Nacional-FN [partido de extrema direita francês] soou as trombetas da contestação ao consenso, contestação essa já existente, embora bastante minoritária, à direita e à esquerda. Mas o fato de o FN apreender-se de um problema não significa que o problema não exista. Felizmente Claude Allègre [ver artigo postado em 2.2.10] e outros começaram a soar o alarme.

Vou abordar aqui a questão dos modelos. Há um problema de credibilidade dos modelos de mudanças climáticas e das previsões deles resultantes. Na verdade, esses modelos abrangem um domínio – o clima – em que a quantidade de dados disponíveis é pequena, em relação à quantidade de variáveis consideradas na sua elaboração, sem falar das variáveis ainda desconhecidas.


Isto significa que existe um grande número de variáveis de bons modelos, capazes de computar as observações disponíveis, ainda que fundamentados em hipóteses explicativas diferentes, que levam a diferentes e até opostas predições. Tratam-se, neste caso, de “modelos por observações”, caso particular de “sub-determinação das teorias pelos fatos”, bem conhecidos dos pesquisadores dedicados à construção de modelos de sistemas naturais complexos, em que a quantidade de dados não pode ser multiplicada em função de experiências repetidas e reproduzíveis. Consequência: os modelos sobre as mudanças climáticas não passam de hipóteses, em formato computacional bem sofisticado, mas cheios de incertezas em relação à realidade; do mesmo modo que as previsões deles resultantes.


O relatório do Grupo Intergovernamental de Especialistas em Clima (GIEC, ou IPCC, na sigla em inglês) não exclui essa informação, e algumas dessas incertezas são, inclusive, mencionadas. Mas, como o relatório completo é difícil de ser lido e compreendido pelo grande público e pelos agentes políticos, publica-se como adendo um documento abreviado com recomendações aos governantes. E mais incertezas surgem, pelo menos quanto ao possível aumento da temperatura média da Terra, a curto e médio prazos. O resultado é a crença cega no valor da verdade do modelo estabelecido pelos cientistas especialistas do clima e do caráter inelutável das predições mais ou menos apocalípticas.

Essa crença, repetida e amplificada por obras e discursos de grande impacto midiático, tomou a forma de um dogma e de uma religião do “salvar o planeta” em meio à grande parte da opinião pública mundial, quando se sabe que nosso planeta já teve dias piores e não corre perigo agora. Algumas geleiras polares se fundem, alguns glaciares recuam após terem avançado, algumas terras baixas e ilhas correm o risco de serem submergidas em um futuro próximo, ao mesmo tempo em que, talvez, seja um resfriamento que ameace outras regiões do globo. Reunir esses dados em um modelo global é mais do que arriscado, pois nada é menos seguro que a eficácia das medidas preconizadas para “salvar o planeta”.

Mudanças da mesma ordem de grandeza já aconteceram no passado. A importância das atividades humanas nas alterações climáticas observadas há algumas décadas é uma dessas incertezas que dependem do modelo adotado. Mesmo que a temperatura média aumente nas próximas décadas, ainda que a produção de CO2 seja uma variável pertinente, não há certeza alguma de que sua redução seja uma forma eficaz de prevenir um eventual aquecimento global. E nos dizem que, apesar das incertezas e até dos erros identificados, as conclusões dos estudos continuam válidas. Mas isto só faz reforçar a dúvida sobre o valor desses modelos: tão complexos e sub-determinados, que levam às mesmas conclusões, mercê de modificações não desprezíveis dos dados.

É preciso reconhecer que a especialidade científica em situação de incerteza é difícil. Poucos especialistas têm a coragem de assumir que são incapazes de dar resposta à demanda, mesmo em probabilidade. Muitas vezes são tentados a dar alguma resposta, seja com o intuito de tranqüilizar ou de prevenir. O sangue contaminado [
pelo vírus da AIDS, em sangue distribuído a hemofílicos pelo Centro Nacional de Transfusão Sanguínea da França, entre 1984 e 1985] foi um ponto de virada. A tendência a tranqüilizar, que antes parecia prevalecer foi derrubada, ao mesmo tempo em que se impunha cada vez mais o princípio da precaução.

Hoje os especialistas preferem muito mais ser profetas da infelicidade; de acordo com o profeta Jeremias, corre-se menos risco anunciando uma catástrofe do que uma boa notícia, pois em caso de erro sempre é possível argumentar que a catástrofe foi evitada graças àqueles que a anunciaram. O princípio da precaução uma vez aplicado suscita dúvidas sobre a catástrofe anunciada, o que já é perigoso para os especialistas, de quem se espera certezas e recomendações firmes.

No caso em questão, o IPCC foi constituído com uma missão bastante precisa, fortemente orientada, desde o começo, ao que deveria ser a conclusão do seu relatório. Tratava-se de avaliar de maneira clara e objetiva “as informações de origem científica, técnica e socioeconômica necessárias para compreender melhor os fundamentos científicos dos riscos ligados à mudança climática de origem humana” para, em seguida, apreciar possíveis conseqüências, visando medidas de adaptação e atenuação. Isto significa que, tidos como certos os riscos e sua origem humana, só restaria ao grupo de especialistas avaliar suas “bases científicas” e deduzir recomendações. Não fica bem nessas condições lançar dúvidas sobre a realidade dos riscos. Por outro lado, teria sido arriscado desconsiderá-los e perder toda credibilidade às vistas do poder político que, por sua vez, se nutre da opinião dos cientistas.

Mais importante do que impor medidas que ameaçam o desenvolvimento de países emergentes e em via de desenvolvimento, como também a economia de países desenvolvidos, em nome dessa nova religião de vocação universal, é enfrentar os problemas ambientais locais, como a poluição atmosférica das grandes cidades, a poluição de mares e rios causada pelo excesso de dejetos, fruto da superpopulação.

Como dizia um especialista do clima durante a realização da conferência de Copenhagen, o aquecimento climático não é visto da mesma maneira na Dinamarca e em Bangladesh, que sofre regularmente catástrofes naturais amplificadas pelo estado precário de cidades e vilas. Pode-se dizer o mesmo do Haiti e outros países pobres. Ao invés de se tentar prevenir riscos globais incertos adotando medidas globais de eficácia igualmente duvidosa, melhor seria resolver os problemas localmente, corrigindo o que seja possível e adaptando-se ao que seja inevitável em curto prazo, através de medidas de urbanização e, se necessário, de deslocamentos de populações.

Em vez de “salvar o planeta”, salvar as populações desnutridas e sem água potável. Planejar adequadamente a transição energética, permitindo aos países emergentes e pobres o uso de combustíveis fósseis, para lhes possibilitar recuperar o atraso, com o uso simultâneo de energias renováveis como solução para o esgotamento dos hidrocarbonetos que, embora inelutável, sua previsão é bem difícil de ser determinada com exatidão.

Pelo andar da carruagem, a religião ecológica do “salvar o planeta” pode nos levar a excessos ideológicos com risco até de um totalitarismo, como já preconizado por certas lideranças mundiais; tudo, evidentemente, em prol do bem estar da humanidade e em nome da “ciência”, tal como as ideologias totalitárias do século XX. Mas dessa vez com uma novidade, o “princípio da precaução”.

Ainda que as catástrofes anunciadas não sejam certas, nos dizem que não se corre risco algum com a aplicação das medidas preconizadas, em nome do princípio da precaução. Mas isso é falso. Na verdade, o que se põe em risco com algumas dessas medidas é o desenvolvimento das populações pobres e a economia das sociedades de consumo à qual elas aspiram. O bom senso imperou em Copenhagen. As aplicações do princípio da precaução envolvem riscos tão difíceis de avaliar quanto àqueles que ele diz prevenir. É por isso que, enquanto princípio geral de ação, ele é autodestrutível.

Afinal de contas, não é certo, mas é possível que exista o Deus dos teólogos. A famosa aposta de Pascal nada mais é do que a aplicação do princípio da precaução, com uma estimativa de riscos aceitável, apostando em um ganho maior, a felicidade eterna infinita. Aplicando o princípio da precaução nessa esfera, deveríamos a muito tempo ter decidido, com peso na consciência e culpa, aplicar as medidas de restrições e renúncias de todo tipo preconizadas pelos especialistas, isto é, os teólogos especialistas de Deus, assim como são os novos especialistas do clima. Felizmente nada disso aconteceu. Esperemos que as gerações futuras sejam tão sábias quanto àquelas que nos precederam.

sábado, 27 de março de 2010

A noite americana de Truffaut: o filme...

...dentro do filme

“La nuit américaine” (França/Itália, 1973.
Direção: François Truffaut. Duração: 115 min)


Eu devo muito ao cinema americano porque ele me formou, a partir da liberação da França no final da guerra. Nos filmes que faço há uma espécie de competição entre a influência do cinema americano e minhas raízes, que são muito francesas. Apesar disso, acho que os americanos vêem em A Noite Americana um filme bastante francês. Truffaut, em entrevista, quando premiado por melhor diretor e melhor filme do ano, pela Associação Nacional de Críticos Americanos, com A Noite Americana.

“A noite americana” é uma história de cinema, do fazer cinema, protagonizada por atores, diretores, técnicos e produtores de uma equipe de filmagem. O título expressa uma cena noturna filmada em pleno dia – efeito obtido com técnicas especiais de captação da imagem – daí sua tradução para o inglês “Day for night”; em italiano, “Effetto notte”. É um filme dentro do filme, metalinguagem pura. Crônica de uma equipe de filmagem durante a realização do filme “A chegada de Pamela”.


Cartaz do filme nos Estados Unidos
Gravado em estúdio na cidade de Nice, “A chegada de Pamela” é a história de um rapaz, Alphonse (Alphonse, Jean-Pierre Léaud) que se casa com uma jovem inglesa – Pamela (Julie Baker, Jacqueline Bisset). Durante uma visita do casal à família do rapaz na Riviera francesa, Pamela se apaixona pelo sogro (Alexandre, Jean-Pierre Aumont).

O diretor (Ferrand, Truffaut), logo no início da filmagem, exprime em voz off um sentimento profético: “Fazer um filme é exatamente como viajar de diligência pelo Velho Oeste; no início desejamos uma viagem tranqüila, mas rapidamente nos indagamos se chegaremos ao destino”. E as relações interpessoais entre membros da equipe (o ator principal, Alphonse/Léaud, pede a estagiária Liliane/Dani em casamento), os problemas na hora de gravar, se sucedem. Severine (interpretada por Valentina Cortese, atriz italiana indicada ao Oscar de melhor coadjuvante naquele ano), que interpreta a mãe de Alphonse, visivelmente embriagada, não consegue decorar sua fala.

Alphonse (Jean-Pierre Léaud) e Liliane (Dani)
Na verdade, o drama de Severine é maior do que parece. Ela quase não teria aceito o papel, porque seu filho estava em estado terminal, com leucemia. Detalhe da imagem fechando no casal de atores (Severine/Alexandre) abraçados – ele a consolando por suas recorrentes falhas – o restante da tela em negro; técnica muito usada nas primeiras décadas do cinema – como em “O gabinete do Dr. Caligari” (Robert Wiene, 1920) – e repetida em outras cenas de “Pamela”.

Severine (Valentina Cortese)
Diante de tanta dificuldade no set de filmagem, o diretor não tem o sono tranquilo; a cena (em preto-e-branco) de um menino andando no meio da noite com uma bengala, vai se repetir nos sonhos de Ferrand.

Os problemas continuam... O diretor de produção às voltas com uma mulher alheia à equipe, que está sempre próxima ao set, sentada, tricotando; “já começo a me habituar com ela por perto”, diz Ferrand. Alphonse que discute o tempo todo com sua noiva (a contra-regra Liliane, que é observada por Ferrand aos beijos com o diretor de fotografia). A atriz Stacy, que duvida da sua capacidade de interpretar, resiste em gravar uma cena em que aparece nadando de maiô numa piscina. Na verdade, Stacy está grávida, por isso não quer gravar a cena; mesmo assim, o produtor do filme tenta mantê-la, sugerindo alteração do roteiro, o que é prontamente recusado por Ferrand.

Jacqueline Bisset, anos 70

E chega a atriz hollywoodiana Julie Baker/J. Bisset, para fazer Pamela. Ela vem com o marido, um médico americano, que acompanha suas gravações, a convite de Ferrand. Alexandre (“galã” de meia idade), que ia com freqüência ao aeroporto, finalmente retorna ao estúdio com um rapaz que parece ser seu namorado, para a surpresa de todos. Improvisação de Ferrand, com sua assistente Joelle; eles re-escrevem parte do roteiro para uma cena que seria gravada na manhã seguinte, na qual Pamela e seu sogro (Alexandre) decidem fugir no meio da noite, “como dois ladrões”, fala sugerida pela colaboradora do diretor. A cena é gravada com sucesso, finalizada com a câmera fechando na janela da cozinha em que estão Pamela e Alexandre. A trilha é de uma música clássica, de melodia triunfante, presente também em outras cenas de “A noite”.

Julie Baker (J. Bisset) e Alphonse (J-P Léaud)
Liliane (a estagiária assistente) se apaixona pelo dublê inglês Mark, durante a gravação do acidente de carro com Pamela – a cena “day for night” – num vilarejo perto de Nice. Na volta ao estúdio, ela diz a Julie que vai deixar Alphonse e seguir com Mark para Londres. Um diálogo denso e cômico se entabula entre as duas, Liliane se abrindo sobre sua conturbada relação com o jovem ator. É Julie que dá a notícia a Alphonse, no momento em que toda a equipe posa para uma foto de recordação. Ele, em desespero, corre atrás de Liliane. Todos perplexos, trilha sugestiva de suspense. Câmera em plano detalhe, captando a expressão de vários personagens. Joelle – a assistente de Ferrand, e como ele uma apaixonada por cinema – ao ouvir de Julie a história da separação dos colegas, desabafa: “por um filme eu poderia abandonar um homem, mas por um homem, eu jamais abandonaria um filme”.

Truffaut e Welles, em 1966
Ainda longe de concluir o filme, Ferrand tem o sono perturbado, a cena do menino com bengala lhe aparece novamente em sonho; dessa vez, o mistério é revelado: o menino caminha até um cinema e, com a ajuda da bengala, furta os cartazes de “Cidadão Kane” (Orson Welles, 1941). Cena autobiográfica de Truffaut?

Numa confraternização no hotel onde a equipe está hospedada, Severine/Cortese rouba a cena, com suas histórias e ressentimentos de toda uma vida dedicada ao cinema. Alguns se preocupam com a ausência de Alphonse, que se recusa a sair do quarto e prefere curtir sua fossa sozinho.

Terminada a festa, Ferrand tanta demovê-lo de seu estado depressivo e encorajá-lo ao trabalho do dia seguinte, argumentando “é verdade que existe a vida privada, mas ela é complicada para todo mundo, os filmes são mais harmoniosos que a vida, eles avançam como trens no meio da noite; pessoas como você e eu foram feitas para ser felizes com o trabalho que fazem, que é o de fazer cinema”. Não dá certo, e Alphonse decide abandonar as filmagens; agora é Julie que tenta convencê-lo a permanecer. E consegue. Com sua beleza estonteante, ela seduz o mimado ator.

Ferrand (Truffaut) e Alphonse (J-P Léaud)
Mas Alphonse não entendeu que Julie só fez o que fez pela continuidade do filme, por amor ao cinema, e, frustrado com essa nova paixão, foge do set. Mais tarde ele retorna, faz “mea culpa” e se retrata com Julie e a equipe. Não bastassem tantos problemas, Alexandre sofre um acidente de carro fatal, quando levava seu "amigo" ao aeroporto. Mais improvisação no roteiro. Um dublê substitui Alexandre na cena final de “Pamela”: Alphonse mata o pai pelas costas com um tiro de pistola. Na cena final de “A noite”, o contra-regras Bernard traduz bem a idéia do filme, em entrevista para um repórter que buscava depoimentos sobre Alexandre, “espero que gostem do filme, tanto como nós gostamos de fazê-lo”.

Ferrand (Truffaut), a assistente Joelle e

contra-regras
A câmera estática é recorrente em “Pamela” – típico dos filmes franceses e europeus em geral – em contraste com os movimentos panorâmicos da câmera de “A noite” que mostram o ambiente frenético do set de filmagem.

O filme de Truffaut toma literalmente por objeto o cinema, pela representação de seus agentes produtores, reafirmando o conceito de metafilme estabelecido por estudiosos, como o francês Yannick Mouren, autor de “Truffaut, l’art du récit”
(Lettres Modernes/Minard, 1997) e “Filmer la création cinématographique – Le film-art poétique” (L’Harmattan, 2009).


Cartaz do filme na Itália
Segundo Mouren, “A noite americana” não seria propriamente um expoente da arte-poética (obra que exprime meta-arte e poesia do cineasta, sem explorar os limites da narrativa convencional), como outros que se valem da metalinguagem, como “Oito e meio” (Fellini, 1963), “Beware of a holy whore” (Fassbinder, 1970), “Memórias” (Woody Allen, 1980) e “Paixão” (Godard, 1981), entre outros. Isto porque Truffaut – que representa o diretor de “Pamela” – não é o protagonista central. De acordo com esse especialista em estudos cinematográficos, em termos de expressão metafílmica como “A noite”, destaque para os clássicos italianos “Bellissima” (Fellini, 1951) e “A dama sem Camélia” (Antonioni, 1953). Para especialistas brasileiros, a maior expressão da cine-poética nacional é Glauber Rocha.

Com ou sem poesia na criação narrativa do cineasta, “A noite americana” é um metafilme do começo ao fim, que mostra o lado humano por trás da realização de uma obra cinematográfica. Bastidores da vida real de profissionais engajados na arte de fazer cinema. Conforme palavras do próprio Truffaut, “mostra a glória dos atores e de todos os profissionais envolvidos na realização do filme, pessoas que exercem sua profissão com enorme prazer; o enredo enfatiza tanto suas vidas privadas, quanto o trabalho que elas realizam em comum”.


Jean-Pierre Léaud


















Jacqueline Bisset

sexta-feira, 26 de março de 2010

O que, de fato, move o pêndulo climático?

'Enquanto a atmosfera é rápida e ágil e responde rapidamente aos toques do oceano, o oceano é pesado e lerdo.' George Philander, climatologista da Universidade de Princeton.

Brian Fagan
A citação acima e o texto abaixo foram extraídos do livro “O Aquecimento Global – a influência do clima no apogeu e declínio das civilizações”, do antropólogo britânico Brian Fagan (São Paulo: Larousse do Brasil, 2009).

Como os agricultores de subsistência atuais, os do ano de 1200 não deixavam que nada se perdesse, mesmo em um ano bom como esse. Basta observar as rugas profundas que marcam o rosto dos adultos para entender. Até os homens e mulheres na casa dos 20 anos parecem velhos, as fisionomias debilitadas pelo trabalho e pela fome ocasional ou pela má alimentação. Contudo, essas pessoas viviam em um mundo mais quente do que fora por muitos séculos, que os climatologistas chamam de Período de Aquecimento Medieval.

Mil anos atrás, tudo na Europa dependia da agricultura. Da Inglaterra e Irlanda até a Europa Central, 80 a 90% da população lutava para ganhar a vida – e, com sorte, comida extra – do solo. A Europa era um continente de agricultores de subsistência, que viviam de colheita em colheita, cujo destino dependia dos caprichos das chuvas e da temperatura.

Havia muito menos gente, então. A população de Londres ultrapassava a casa dos 30 mil habitantes pela primeira vez em 1170. As populações conjuntas da França, Alemanha, Suíça, Áustria e Holanda somavam aproximadamente 36 milhões de pessoas em 1200, e hoje somam mais de 250 milhões. Quase todas essas pessoas viviam em aldeias e vilarejos, ou talvez cidades pequenas, pois as grandes cidades estavam apenas começando a ser um elemento significativo na vida européia. E todos, até mesmo o “grande senhor”, dependiam de uma zona rural cultivada sem máquinas, sementes híbridas ou fertilizantes. Cavalos e bois, e até as esposas, puxavam o arado e o rastelo. A colheita era reunida com as mãos, carregada nas costas das pessoas, talvez transportada até o mercado por uma carroça puxada por bois ou por barcaças.

Londres medieval
Cada agricultor sabia que a terra cultivável precisava ser arada e fertilizada por animais, e depois descansar para recuperar sua fertilidade e minimizar a ocorrência de pragas nas plantas. Os solos mais leves, com melhor irrigação, recebiam as plantações de cereais. Os animais se alimentavam nos bosques e em pasto aberto nos solos mais pesados, argilosos. Sua única proteção contra as secas, tempestades ou geadas repentinas era uma plantação mais diversificada, baseada muito mais em variedades, além dos cereais.

Ganhar a vida com o solo medieval europeu nunca foi tarefa fácil, mas era o que se fazia e, às vezes, com sucesso considerável, especialmente durante os verões mais quentes e secos. Os agricultores da Inglaterra e França cultivavam principalmente trigo, cevada e aveia. Ervilhas e feijões, ricos em vitaminas, eram plantados nos campos no início da primavera e colhidos no outono; os legumes ficavam nas plantas até secarem, e os caules eram plantados de volta como fertilizantes. Legumes e hortaliças de todos os tipos completavam o que era basicamente uma dieta sem carne, à base de pão e mingau.

A maioria dos agricultores tinha uma pequena criação de animais – uma ou duas vacas leiteiras, alguns porcos, ovelhas, cabras e galinhas e, os que tinham sorte, um cavalo ou alguns bois, ou pelo menos acesso a eles para arar. Os animais forneciam carne e leite, e também as peles e a lã.

Todo ano, enquanto o verão amadurecia para dar lugar ao outono, cada comunidade fazia sua colheita e agradecia a Deus pela generosidade, pois a vida não era fácil. O interminável ciclo das estações definia a existência humana. Assim como a rotina da semeadura, o desenvolvimento da plantação e a colheita; a realidade do nascimento, vida e morte; e todos acreditavam que esses eram os desígnios arbitrários do Senhor.

Em uma era muito anterior à da previsão do tempo, todos, fossem reis ou nobres, senhores de guerra, mercadores ou lavradores, estavam à mercê dos ciclos em que se alternavam chuvas pesadas e períodos de seca, tempestades violentas e dias perfeitos de verão. Eram parceiros involuntários em uma dança climática intrincada conduzida pela atmosfera e pelos oceanos. Mas, especialmente entre os anos 800 e 1300, a dança foi lentamente adquirindo o ritmo mais lento de uma valsa, onde o calor do verão e condições mais estáveis tendiam – ressalte-se: "tendiam" – a ser norma. Os giros da mudança climática desaceleraram momentaneamente. A Europa mudou profundamente durante esses cinco séculos, que vão de 800 a 1300, o Período de Aquecimento Medieval.

As mudanças de temperatura relativamente pequenas desses séculos são mínimas quando comparadas àquelas do fim da última Idade do Gelo. Cerca de 12 mil anos atrás, o mundo entrou em um período de aquecimento global prolongado, conhecido pelos geólogos como holoceno, que continua até hoje. Gerações de cientistas, trabalhando com dados inadequados, criaram imagens de mais de dez milênios de clima basicamente moderno, com mudanças relativamente pequenas desde o aquecimento que se seguiu à era do gelo. Mas uma revolução na paleoclimatologia transformou nosso conhecimento do holoceno nos últimos anos. Podemos agora discernir, não apenas oscilações de inverno e verão de um milênio atrás, mas também ciclos muito mais curtos, principalmente nos últimos dois mil anos. Algumas mudanças climáticas duram um século ou uma década; outras, como os fenômenos causados pelo El Niño, não duram mais do que aproximadamente um ano.

Poucos acontecimentos climáticos importantes permaneciam por períodos maiores do que uma geração e, por isso, eram rapidamente esquecidos em épocas em que a expectativa de vida era de pouco mais de trinta anos. A nova climatologia nos mostrou que o relógio climático pode acelerar ou diminuir a velocidade, recuar ou mudar de direção subitamente e, até mesmo, permanecer estável por longos períodos de tempo, mas ele nunca para.

Ninguém sabe exatamente o que move o pêndulo climático. É bem provável que pequenas mudanças na inclinação da Terra provoquem alterações no clima, assim como os ciclos de atividade solar. Nos últimos anos, entretanto, a maioria dos climatologistas passou a acreditar que interações complexas, embora ainda pouco compreendidas, entre a atmosfera e o oceano desempenham um papel muito importante nas alterações climáticas.

sexta-feira, 19 de março de 2010

Cinema & Literatura

João Batista de Brito é doutor em letras e foi professor de literatura inglesa na Universidade Federal da Paraíba durante 25 anos. Crítico de cinema, é autor de vários livros, entre eles, “Hollywood em outras línguas: a tradução de títulos de filmes e seus problemas” (João Pessoa: Editora UFPB, 2009), “Literatura no cinema” (São Paulo: Unimarco, 2006) e “Um beijo é só um beijo – minicontos para cinéfilos” (João Pessoa: Manufatura, 2001); em todos eles o autor aborda a relação simbiótica entre cinema e literatura.

Em seu último livro, "Hollywood em outras línguas...", João Batista de Brito analisa as traduções de 20 títulos de filmes norteamericanos no Brasil e em outros quatro países: Espanha, França, Itália e Alemanha. Por exemplo, um dos estudos de caso é o clássico de Hitchcock “Vertigo” (em português, Vertigem), intitulado no Brasil como “Um corpo que cai”, na Espanha “No meio de mortos”, na França “Suores frios”, na Itália “A mulher que viveu duas vezes” e na Alemanha “No reino dos mortos”.

Para João Batista, as reintitulações – que refletem obviamente intenções mercadológicas – guardam relações estreitas com o perfil antropológico de cada país. O autor mostra que títulos com tradução livre, que chegam a ser estapafúrdios, não são exclusividade do Brasil. Há casos, inclusive, de países homófonos - como Argentina e México - com reintitulações distintas de um mesmo filme hollywoodiano.

Confira abaixo a entrevista de João Batista de Brito ao jornal discente da UFPB Extremo Oriental*, em 2007.

E.O. – Enquanto o cinema acaba de completar um século de vida, são 25 séculos de literatura, desde as tragédias gregas de Ésquilo, Sófocles e Eurípedes. É possível fazer uma avaliação geral sobre as adaptações de obras literárias à sétima arte? A literatura – clássica ou moderna – revigorou-se com o advento do cinema, ou apenas serviu para consagrar essa nova arte?

J.B.B. – Esta é uma questão genérica demais para se dar uma opinião definitiva. Acho que, com a prática da adaptação ao longo do século XX, houve uma troca entre as duas linguagens, com lucros eventuais para ambas: pelo menos no terreno da recepção, a literatura ficou mais popular, e o cinema, mais maduro. Do ponto de vista semiótico, o interessante é observar um ligeiro paradoxo: é que a prática generalizada da adaptação no mundo todo, ao mesmo tempo, aproximou e afastou estas duas modalidades de arte, na medida em que enfatizou o que tinham em comum – a narratividade, por exemplo – e o que tinham de diferente: na literatura, a disposição à análise, e no cinema, a disposição à síntese.

E.O. – Como você avalia as adaptações da obra de Shakespeare para o cinema?

J.B.B. – Considerada diacronicamente, ou seja, enquanto fato histórico, a adaptação de Shakespeare ao cinema passou (como, aliás, a de outros autores) por um processo que vai da fidelidade cega à liberdade transcriadora. Fazendo o retrospecto, é possível notar que as adaptações mais antigas tenderam a ser mais servis ao texto original, ao passo que as mais modernas (dos anos sessenta ao presente) tendem a ser mais ousadas. Exemplos de ousadia transcriadora, lembrados ao acaso, podem ser: o musical de Robert Wise “Amor sublime amor” que muda o cenário, o tempo e os antagonistas da peça “Romeu e Julieta”; o experimento de Peter Greenaway “A última tempestade”, que conta a estória de “The tempest” como se fosse poesia plástica; e o filme de Al Pacino “Ricardo III”, que, ao invés de adaptar a peça original, metalinguisticamente, formula a pergunta sobre a possibilidade de empreender a adaptação, convidando o espectador a contribuir na resposta à pergunta formulada.

E.O. – Em sua opinião, quais os diretores mais bem sucedidos com a adaptação de textos de Shakespeare?

J.B.B. – Não preciso citar nomes, mas, acho que é um consenso que os mais bem sucedidos adaptadores de Shakespeare têm sido os que relegaram a forma (teatro) e se concentraram no espírito da obra. Quem faz o milagre de casar as duas coisas é o Kenneth Brannah de “Hamlet”, ao mesmo tempo teatral e cinematográfico, fiel e ousado, um caso à parte, a ser estudado pelos especialistas. Um detalhe a lembrar, a esse propósito, é que o próprio Shakespeare nunca foi original, no sentido em que todas as suas peças eram recriações de textos ou histórias já existentes, que ele, espertamente, modificava em razão de seus objetivos imediatos. De modo que, os cineastas livre-adaptadores que vão em busca do espírito e agridem a forma estão apenas sendo “shakespearianos”.

E.O. – O livro de contos que você escreveu (“Um beijo é só um beijo”), dirigido especialmente ao público cinéfilo, é uma coletânea de textos baseados em grandes clássicos do cinema. Em sua opinião, quais os três melhores filmes de todos os tempos?

J.B.B. – Não é sensato citar os três melhores filmes de todos os tempos sem um preâmbulo explicativo sobre os critérios da escolha. Estes filmes podem ser escolhidos, impessoalmente, pela relevância histórica, semiótica, estética, etc, ou, pessoalmente, pelo gosto de quem escolhe. No primeiro caso, com certeza, os filmes seriam obras primas consagradas pela crítica internacional, como “Cidadão Kane”, “A regra do jogo” e “O encouraçado Potemkin”. Já no segundo caso, a coisa é toda diferente; se tivesse de escolher a partir de critérios estritamente pessoais, eu teria que mudar a expressão “os três melhores” para “os três que mais amo” e aí, eles seriam “A felicidade não se compra” (“It’s a wonderful life”, Frank Capra, 1946), “Desencanto” (“Brief encounter”, David Lean, 1945) e “O homem que matou o facínora” (“The man who shot Liberty Valence”, John Ford, 1962).

*
Edição de 23 de agosto de 2007. Expediente: Angelina Oliveira, Antonio Pralon, Genivalda Oliveira, Luziânia Porto e Vanessa Brás.

quinta-feira, 18 de março de 2010

As idéias são a arma essencial...

...na luta da humanidade




































































































































































Amores contingentes e existencialismo

Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir...

...viveram à frente do seu tempo. Tiveram um relacionamento de mais de 50 anos, sem nunca terem se casado ou vivido juntos. Marcaram o pensamento moderno com suas obras e destacaram-se como ativistas políticos na segunda metade do século XX. Ele criou o existencialismo, ela o feminismo.

Adeptos de amores “contingentes”, Sartre e Beauvoir viam a “fidelidade” como sinônimo de compromisso com a verdade – base do amor “absoluto” que tinham um pelo outro. As mentiras, ou “meias-verdades”, como dizia Sartre, só cabiam nos amores contingentes, aqueles não essenciais, apenas circunstanciais. No amor absoluto, não havia lugar para segredo, nem privacidade, que, para o casal, eram atributos de uma “hipocrisia burguesa”.

Muitos foram os amores contingentes vividos por ambos. Sartre teve várias mulheres por longos anos, algumas delas sustentadas por ele até sua morte. Não só financeiramente as ajudava. Algumas eram atendidas regularmente em sessões de psicanálise realizadas por ele mesmo. Wanda, Dolores, Michelle, Lena e Arlette foram seus relacionamentos mais marcantes. Nenhum deles comparável, em intensidade e permanência, ao que teve com Simone, seu verdadeiro amor. Só com ela a cumplicidade era total. Era com Simone que Sartre tinha intermináveis e prazerosos tête-à-tête, em que falavam de literatura, filosofia, política, assuntos domésticos e, claro, de suas intimidades. Partilhavam confidências de suas relações amorosas, das mais consistentes às mais fugazes.

Sartre era um homem altamente racional, mas extremamente chauvinista na arte de seduzir. Esteticamente desfavorecido – era baixinho, vesgo e barrigudo – fazia de seu dom com as palavras arma infalível para arrebatar corações. Também usava e abusava do humor em suas conquistas amorosas. Algumas de suas mulheres enlouqueciam literalmente, ao se sentirem não correspondidas na paixão que Sartre lhes provocava. Uma delas, Cristina, jornalista brasileira de 25 anos, que entrevistara Sartre em Recife em 1960, entregara sua virgindade a ele, então com 55 anos.

Machista por natureza, Sartre era avesso ao homossexualismo. Já Simone, conforme revelaram suas cartas a Sartre – publicadas postumamente – teve várias experiências com mulheres. Mas foi marcada mesmo por seus romances com homens, entre eles, Laurent, Algren e Claude.

A filosofia existencialista, sistematizada por Sartre e difundida por ele mundo afora, marcou a vida do casal. O existencialismo sartreano procura explicar todos os aspectos da experiência humana. Para Sartre a “existência precede e governa a essência”. Uma doutrina que “não tratava de possibilidades ou intenções, mas sim de projetos concretos”, e era aplicável também ao amor. Dizia Sartre, “não existe amor a não ser o que se constrói”.

A idéia de liberdade era parte integrante da vida de Sartre e Beauvoir. Dizia ele, “o homem é condenado a ser livre”. Dizia ela, “toda tentativa de evitar nossa liberdade é má-fé”. Tinham uma preocupação comum que balizava suas vidas: como fazer o melhor uso possível da liberdade? Quando jovens, priorizaram a liberdade individual. Mais tarde, quando se tornaram personalidades públicas, Sartre e Beauvoir produziram uma literatura altamente engajada.

Pacifista e comunista, Sartre foi um apologista do stalinismo. Manteve laços estreitos com a antiga União Soviética, inclusive um longo caso amoroso com uma russa, Lenina Zonina. Esteve com Beauvoir em Cuba, logo após a revolução, em companhia de Fidel Castro e Che Guevara. Já sexagenários, participaram ativamente das manifestações estudantis de 1968 na França.

Marcados profundamente pela guerra e pela ocupação nazista da França, foram acusados de antipatriotas – pelo apoio manifestado à independência da Argélia, então colônia francesa – e submetidos a um exílio em seu próprio país. Desde jovens eram obcecados com a idéia de posteridade – o que Sartre chamava de “ilusão biográfica” –, com o valor que suas obras e relatos de vida teriam para a humanidade.

Visionários da importância do que tinham a dizer para o mundo, Sartre e Beauvoir produziram uma vasta bibliografia, que inclui romances, contos, ensaios filosóficos, dramaturgia, novelas e artigos para revistas e jornais. Trabalharam com obstinação e disciplina. A biógrafa de Sartre conta que ele chegou a passar cinco noites em claro – a base de remédios – para concluir um ensaio. Não gostava de cadeiras confortáveis, que pudessem “corromper” o usuário, tamanha era sua disposição para escrever. Morreu em 1980 aos 75 anos. Beauvoir, seis anos depois, aos 78. Não sem razão, a história reservou a eles um lugar à altura do que foram para sua época e do que representam suas obras para o pensamento moderno.

FONTE: Tête-à-tête, de Hazel Rowley (Rio de Janeiro: Objetiva, 2006).

domingo, 14 de março de 2010

Jean Rouch e o cinema-verdade

“Mais me interessa provocar a realidade pela presença da câmera, do que filmar a realidade tal como ela é.” Jean Rouch (1917- 2004), etnólogo e cineasta.

“Les tambours d’avant - Tourou et Bitti” (1972, doc 11')

“Os tambores do passado” [tradução minha] trata do ritual religioso de uma tribo do Niger – os Sanghay. Tourou e Bitti são os nomes, em dialeto local, dos tambores arcaicos que compõem o grupo de percussão que acompanha o cerimonial ritualístico da aldeia. Filmado em apenas dois planos-seqüência, as cenas revelam de forma simples e direta vários aspectos de um rito sagrado daquela comunidade africana. A narrativa é do próprio Jean Rouch, toda em off.

No primeiro plano de filmagem, a câmera mostra a tribo do exterior e vem se aproximando, tal qual o olhar de um visitante que ali adentra pela primeira vez. A duração desse plano é de cerca de 1 minuto. Nesse tempo, Rouch introduz o espectador no contexto do que seria filmado... uma “dança de possessão”, para solicitar ao génie de la brousse – espírito transcendental ou ser mítico – proteção para as próximas colheitas (há três anos a plantação vinha sendo atacada por insetos).

Ele explica que fora convidado pelos líderes espirituais da tribo para assistir ao quarto dia da cerimônia e que, no final da tarde, embora nenhum dançarino tivesse ainda sido possuído, decidira “realizar um plano-seqüência de alguns minutos, a fim de conservar um documento filmado em tempo real sobre esses tambores do passado”. Na seqüência de sua narrativa, Rouch conclui “assim, deu-se este ensaio de cinema etnográfico na primeira pessoa”, fechando o primeiro plano do filme. No final do plano, com um movimento de câmera descendente, Rouch parece convidar o espectador a tocar as mãos naquele solo, terra árida, de difícil cultivo, motivo pelo qual se realiza o ritual.

O segundo plano começa com a imagem em negro, abrindo-se lentamente, câmera apontada para o céu e dirigindo-se ao horizonte com a aldeia ao fundo; tem a duração aproximada de 8 minutos. Logo de início, o diretor expõe claramente – sempre em off – a sua visão do que seja fazer um filme, visão esta que serviria bem para definir o chamado “cinema direto” (ou "cinema-verdade"), do qual Rouch foi um dos principais precursores: “entrar em um filme é mergulhar na realidade e estar ao mesmo tempo presente e invisível”.

Rouch, câmera na mão, vai se aproximando do povoado, por entre paliçadas, até alcançar o perímetro que delimita as cabanas. Pouco antes de entrar na aldeia, aparece um homem, todo de branco, que lhe aguardava (Zimma Daouda Sido); é a partir desse personagem que o espectador vai descobrir os espaços em torno do qual se desenrolará o ritual. Rouch segue os passos do homem, mas o movimento da câmera segue seu olhar inquieto, que tudo observa.

Já na entrada percebe um curral de cabras que seriam sacrificadas em rituais futuros e, mais adiante, mostra currais de cavalo vazios e mulheres sentadas embaixo de uma palhoça. Adentra-se, em fim, a um espaço circular onde vivem os habitantes do vilarejo; aliás, este plano em forma de círculo será explorado diversas vezes pelo diretor, já que esta é a geometria formada pelos participantes da cerimônia – músicos e dançarinos – e também pelos moradores que simplesmente observam o espetáculo.

Essa dinâmica circular do filme parece indicar o caráter “cíclico” do ritual, como um evento que se reproduz e que pode ser repetido infindavelmente. Quando Rouch se aproxima do círculo destinado à dança de possessão, ele encontra outro membro da comunidade, vestido de azul marinho – o velho Sangou Albidou –, que continua o papel do seu confrade, o de guiar o cineasta. Seguindo este velho homem, Rouch depara-se diante do conjunto de tambores – tema central da história – e aproxima a câmera de um deles (o Tourou), para mostrá-lo em close; de novo, uma forma circular. Faz então um movimento semicircular com a câmera, para mostrar os diferentes atores que compõem o grupo de percursionistas.

Minutos mais tarde, após uma breve interrupção do som dos tambores, a câmera segue um homem e uma mulher em transe, possuídos pelo génie de la brousse. Em seguida, filma alternadamente os músicos e os dançarinos em possessão; esta seqüência é facilitada pelo movimento dos dançarinos, que vão de encontro aos músicos – criadores dos rufares de Tourou e Bitti – responsáveis pela evocação do transe. É o tema do “encontro” presente no documentário, que é fundamental tanto na forma quanto no conteúdo. Finalmente, Rouch se afasta do ritual para colocar-se como espectador das pessoas em transe, e termina o plano como começou: câmera apontada para os raios de luz do sol poente, com a imagem enegrecendo suavemente.

A narrativa que acompanha essas imagens finais é rica em poesia e conteúdo etnológico: “Os deuses agora esperam pelo sacrifício [o sangue de uma cabra que lhes seria ofertado], e eu devia continuar filmando, mas quis apenas fazer um filme, voltar ao começo da minha história, para ver o que viam as crianças da escola, esta pequena praça do vilarejo, os últimos raios de sol durante uma cerimônia fértil, onde os homens e os deuses falavam das colheitas futuras”.

Ao analisar Tourou et Bitti, é possível traçar um paralelo entre a técnica de filmagem de Jean Rouch e a de Robert Flaherty; ambos utilizam a câmera como elemento participativo da história, embora no primeiro não haja reconstituição ou interpretação. O lugar comum dos dois cineastas é marcado pela proximidade entre câmera e personagens; a câmera pilotada por Rouch torna-se praticamente um personagem que participa do ritual. Ela converte-se não só num elemento catalisador do ritual – deslanchando a possessão espiritual –, mas também em parte integrante do transe, constituindo-se protagonista.

De fato, após quatro dias de espera pela encarnação do espírito génie de la brousse, Rouch é convidado pelos líderes religiosos da tribo a filmar a continuação da cerimônia, conforme ele próprio narra no prólogo do filme. Revela-se o cineasta etnólogo, cujo embasamento fílmico se sustenta em uma “etnologia participativa” – que se exerce em contraposição à “etnologia de época”, baseada no colonialismo –, em que o indivíduo não só é analisado como objeto de estudo, mas também participa desses estudos.

Na realidade, o trabalho de Jean Rouch não se limita apenas à realização do documentário; ele atribui grande importância ao sentido de continuidade que o registro visual possibilita. Sempre restitui suas imagens às populações filmadas. Sua completa integração com os habitantes da tribo, os personagens que compõem “os tambores do passado”, seguida de um profundo estudo etnológico, lhe fornece embasamento para o ensaio que escrevera meses depois da filmagem, apresentado num colóquio em Paris sobre “A noção de pessoa na África negra” [1]. Neste ensaio, Rouch analisa as inter-relações dos processos de transfiguração da pessoa possuída, do mágico, do bruxo, do cineasta e do etnógrafo.

Robert Flaherty (câmera na mão)
Como nos filmes de Flaherty, os habitantes da comunidade africana abordados por Rouch são consencientes e aceitam ser filmados. Mas ao contrário da démarche de Flaherty, cujo interesse etnológico era basicamente penetrar na cultura do outro – vive dois anos no círculo polar norte, junto aos Inuits, para filmar “Nanouk, o esquimó” –, mas sem abdicar de sua visão ocidental, Rouch não idealizara seu documentário do ponto de vista dos Sanghay.
















A démarche roucheana teve como pressuposto a formação de laços estreitos com a cultura daquela comunidade, uma longa “preparação de terreno”, a qual fora alcançada muito antes do projeto para documentar cinematograficamente o ritual. Isto leva o espectador a associar-se com a visão do cineasta, uma vez que este o conduz, com certa credibilidade, a entrar em um universo desconhecido, a partir do exterior, mas também porque sua posição de cineasta é narrada em voz off.

Efetivamente, os comentários de Rouch nada tem a ver com as locuções em off que normalmente aparecem nos documentários; não há redundância entre o que narra e a imagem mostrada, seus comentários levam o espectador a uma reflexão sobre o processo de filmagem do cineasta: no início do segundo plano-seqüência, ele faz um paralelo entre o entrar na tribo e o entrar num filme. Sua narrativa confere precisão à natureza das imagens e, assim, possibilita canalizar o olhar do espectador, explicitando-lhe as imagens, tornando-as inteligíveis, para que o mesmo possa ver as coisas simplesmente como elas são, ao invés de induzi-lo a interpretá-las. Nesse aspecto, o epílogo do filme é emblemático: Rouch se distanciando da cena do ritual e adotando o ponto de vista das crianças da aldeia.

Dziga Vertov (em ação)
Por outro lado, o papel ativo da câmera de Rouch faz do seu cinema ponto comum com o de Dziga Vertov (“o homem da câmera”); para ambos, filmar é “captar a vida de improviso”. De fato, é pela ação da câmera que o documentário de Rouch tem o poder de transmitir, com tamanho realismo, aquele ritual insólito, levando o espectador para uma viagem em tempo real. A câmera está ali, movendo-se em todo o espaço destinado ao ritual, ela se faz presente a todos, líderes da tribo, músicos, dançarinos e habitantes que observam o espetáculo.

Levada nos ombros do diretor, ela forma com ele uma só “entidade”, capaz de desencadear o processo de transe naqueles que, até então, esperavam em vão os “espíritos superiores”. No momento em que os tambores cessam de rufar, a câmera continua em ação, em movimento, aproximando-se ainda mais dos músicos que, inesperadamente (ou justamente devido à presença dela), voltam a tocar, fazendo com que, instantes depois, eclodisse o transe nos dançarinos, tornando mais intenso e animado o ritual.

Neste curta-metragem, Rouch procura aproximar sua câmera o máximo possível do olhar humano, transmitindo ao espectador um sincronismo de imagens em tempo real, graças ao uso do plano-seqüência. Essa proximidade estreita da câmera com os tipos humanos filmados propicia ao espectador uma percepção realística dos lugares, dos acontecimentos e dos personagens, e tornou-se uma marca presente em toda a filmografia de Rouch.

[1] Jean Rouch, « Essai sur les avatars de la personne du possédé, du magicien, du sorcier, du cinéaste et de l'ethnographe », dans La notion de personne en Afrique noire, Colloque international du Centre national de la recherche scientifique (Paris, 11-17 octobre 1971), Paris, Éditions du CNRS, 1973, p. 529-543.